Disco de número 10 da banda mais sofisticada da safra noventista do metal estadunidense mostra que experiência e criatividade ainda podem render boas obras.
Os californianos de Sacramento (EUA) do Deftones lançaram nessa metade de agosto o seu 10º disco de estúdio, intitulado private music – ou “música privada” em referência ao título de uma pasta de arquivos no computador do guitarrista Stephen Carpenter.
O álbum, produzido por Nick Raskulinecz, é o sucessor dos mais discretos Ohms (2020) e Gore (2016) e apesar de carregar aprendizados e referências sonoras do que foi explorado nesses dois trabalhos de estúdio, private music é uma evolução em termos de composição, melodia, criatividade, produção e pós. O Deftones apresenta dessa vez uma obra mais coesa, urgente, com identidade e sonoridade muito melhor envelopadas aos ouvidos de quem escuta o disco do que foi a experiência com os seus antecessores.
O nome private music (em caixa baixa mesmo) funciona bem para representar a experiência de ouvir Deftones, que não é necessariamente uma banda que faz um som comercial ou amigável às rádios, apesar de possuir uma enorme base de fãs, engajada, fiel e em constante expansão ao longo dos anos, até entre a geração z.
Apesar de todo o engajamento dos fãs, ouvir Deftones costuma ser uma experiência pessoal e introspectiva, ao invés de fazer parte da trilha sonora de festas ou reuniões de amigos. Foi assim que decidi escutar o álbum pela primeira vez, depois de receber a pauta desse texto: coloquei private music para tocar nos meus fones e saí correndo sozinho por uma trilha por 45 minutos, tempo de duração das 11 músicas inéditas apresentadas pela banda nesta obra.
música privada
A abertura com “my mind is a mountain” não foi bem uma surpresa pois a faixa é parte dos singles que conseguimos ouvir antes do lançamento completo. Uma música que tem todos os elementos clássicos de um som do Deftones: o senso de urgência nos acordes de guitarra casados com a bateria da introdução, o desespero melódico do vocalista Chino Moreno em cima de notas que alternam entre peso e psicodelia espacial nos versos. Uma boa música para a impulsão da largada e os metros iniciais da corrida, mas nada necessariamente inédito ou que não tenhamos ouvido antes da banda.
Em “locked club” esse clima urgente ganha a adesão de Chino cantando de forma mais declamada e enérgica, como se direcionasse seus seguidores em um culto ou em um protesto, enquanto seu vocal ecoa por um filtro que remete a uma espécie de megafone: “dentro dessa tribo nós sabemos o nosso lugar, estamos fechados”
A capa do disco traz a imagem de uma serpente branca em processo de ecdise, termo com origem grega que significa “desnudamento” e representa o momento da troca do exoesqueleto de artrópodes. Logo na 3ª faixa, “ecdysis”, o Deftones referência esse momento de câmbio existencial de saída ao perguntar “podemos ficar sentados aqui, em silêncio, enquanto esperamos sobreviver a esse lugar?”. O processo de ecdise, além de pedir a imobilidade da serpente, também remete à transformação, representada quando Chino canta “a reconquista do nosso ambiente, uma nova fase chega”.
Enquanto eu tentava manter um certo ritmo correndo, private music já me servia como estimulante energético, e a sequência de “infinite source”, “souvenir”, “cXz” veio para adicionar um pouco de dinâmica tanto ao disco quanto às minhas passadas. São faixas que trazem o contraste que a banda faz tão bem entre riffs e refrões distorcidos, a bateria rápida que agride os pratos de attack intensamente, com a melancolia melódica vocal típica e sempre permeada de citações ao vocal de Robert Smith (The Cure) que Chino Moreno é fã declarado.
Pausa para hidratação com “i think about you all the time”, que por boa parte da sua duração é um dueto contemplativo entre Chino e Stephen antes da banda toda comparecer no momento de clímax, remetendo bastante à temática de boas faixas do disco Koi No Yokan (2017), como “Entombed” e “What Happened To You?”
Um dos momentos mais aguardados na corrida chegou quando “milk of the madonna” explodiu nos fones de ouvido e derramou o seu instrumental rápido e agressivo naquele que é provavelmente o ponto mais alto de private music, pelo menos em termos de instrumental. A intensidade das notas tocadas por Abe Cunningham na bateria trazem boas lembranças da mixagem de discos como Saturday Night Wrist (2006), onde o som seco, encorpado e orgânico dos pratos e da caixa principalmente, fazem com que tenhamos a sensação de estar sentados na técnica do estúdio ouvindo o baterista gravar a faixa. Um espetáculo de música e uma boa amostra do que é Deftones para os mais desavisados.
Um pouco ofegante e suado, corro já pensando no fim e sou mais uma vez estimulado pelos vocais intensos e cheios de reverb de Chino Moreno em um megafone durante “cut hands”. O mesmo grita “eu posso dizer que uma resposta é o que você está esperando de mim” e a faixa segue nessa dinâmica de “perguntas e respostas”, com Chino alternando versos entre o melódico e o gutural, como se estivesse em uma discussão com ele mesmo.
Nos metros finais dessa corrida, o Deftones entrega instrumentais que soam como uma releitura moderna do som consagrado pela banda de uma ponta à outra dos anos 2000 em discos como White Pony (2000) com as melodias mais contemplativas e introspectivas ouvidas em Diamond Eyes (2010). A música “~metal dreams” é possivelmente a que melhor representa essa construção.
Assim como o meu estado físico após essa corrida de aproximadamente 45 minutos, “departing the body” trouxe uma sensação de missão cumprida e completude, com a banda encerrando o álbum em uma nota mais otimista
e expansiva, se comparado aos momentos de introspecção que permearam o restante do disco. “Correndo através da luz, desejando o que nos espera além, encantamento em nossos olhos, estamos nos aproximando” canta Chino, após 37 anos e dez discos à frente do Deftones, com o refinamento de quem sabe que está envelhecendo com elegância e vigor, mas sem pensar em nenhuma linha de chegada, pelo menos por enquanto.